Deus - Anúbis
O CHACAL, ANIMAL que tem o hábito de desenterrar ossos, de forma paradoxal representava para os egípcios o deus Anúbis, justamente a divindade considerada a guardiã fiel dos túmulos e patrono do embalsamamento. Em algumas versões da lenda ele aparece como filho do deus Seth com sua esposa Néftis. Entretanto, a versão mais comum é a de que ele é filho de Osíris, que se uniu com Néftis por tê-la confundido com
sua esposa Ísis. Quando esta última deusa veio a saber do nascimento da criança começou a procurá-la. Néftis, por temor a Seth, escondeu-a logo após o parto. Guiada por cães, Ísis encontrou o recém-
-nascido depois de grandes e difíceis penas e encarregou-se de alimentá-lo e Anúbis se converteu em seu acompanhante e guardião. Dizia-se que estava destinado a guardar os deuses, assim como os cães guardam aos homens. No alto da página vemos o chacal envernizado, com garras de prata, que guardava a múmia de Tutankhamon (c. 1333 a 1323 a.C.). Na ilustração acima, um detalhe da dança marcial de três Anúbis na tumba do artífice Inherka, em Deir el-Medina.
EPRESENTADO POR UM CHACAL ou por um cão deitado, ou ainda pela figura de um homem com cabeça de chacal ou de cão, o deus Anúbis (Anpu em egípcio) era o embalsamador divino e um dos responsáveis pelo julgamento dos mortos no além-túmulo. No reino dos mortos, na forma de um homem com cabeça de chacal, ele era o juiz que, após uma série de provas por que passava o defunto, dizia se este era justo e merecia ser bem recebido no além túmulo ou se, ao contrário, seria devorado por um terrível monstro. Anúbis tinha seu centro de culto em Cinópolis, cidade do Alto Egito e recebia títulos exóticos como, por exemplo, morador na câmara de embalsamamento, governador da sala do deus ou senhor das colinas do oeste.
O DEFUNTO, TRAJANDO UM VESTIDO DE LINHO, era introduzido por Anúbis no grande recinto onde o julgamento seria realizado. Saudava, então, a todos os deuses presentes. Depois, pronunciava uma longa declaração de inocência formada por frases negativas:
Não pratiquei pecados contra os homens.
Não maltratei os meus parentes.
Não obriguei ninguém a trabalhar além do que era legítimo.
Não deixei de pagar minhas dívidas.
Não insultei os deuses.
Não fui a causa dos maltratos de um senhor ao seu escravo.
Não pratiquei enganos com o peso da minha balança.
Não causei a fome de ninguém.
Não fiz ninguém chorar.
Não matei ninguém.
Não pratiquei fraudes na medição dos campos.
Não subtrai o leite da boca das crianças.
E assim por diante, alegando que tinha vivido sempre à altura dos padrões de conduta impostos pelos homens e pelos deuses.
ENQUANTO O MORTO FAZIA SUA DECLARAÇÃO, Anúbis ajoelhava-se junto a uma grande balança colocada no meio do salão e ajustava o fiel com uma das mãos, ao mesmo tempo em que segurava o prato direito com a outra. O coração do finado era colocado num dos pratos e, no outro, uma pena, símbolo de Maat, a deusa verdade. O coração humano era considerado pelos egípcios a sede da consciência.
A figura acima, de um papiro do Livro dos Mortos, da XVIII dinastia, conservado no Museu de Turim, ilustra bem essa cena. Aqui podemos ver Anúbis pesando o coração de uma sacerdotisa. O órgão foi posto no prato da esquerda, enquanto que no prato da direita está uma figura que representa a verdade. No alto da balança o deus Thoth, tendo a aparência de um babuíno, anota o resultado. Também podemos ver uma mesa com oferenda de um quarto de carne.
É CLARO QUE SEMPRE HAVIA A POSSIBILIDADE, ainda que remota, do coração desmentir o seu dono e falar mal dele. Contra tal perigo foi composta a invocação que se lê no Capítulo XXX do Livro dos Mortos:
Ó meu coração, minha mãe; ó meu coração, minha mãe! Ó meu coração de minha existência sobre a terra. Nada se erga em oposição a mim no julgamento perante os senhores do tribunal; não se diga de mim nem do que eu tenho feito, "Ele praticou atos contra o justo e o verdadeiro"; nada se volte contra mim na presença do grande deus, senhor de Amentet. Homenagem a ti, ó meu coração! Homenagem a ti, ó meu coração! Homenagem a vós, ó meus rins! Homenagem a vós, ó deuses que assistis nas divinas nuvens, e sois exaltados (ou sagrados) graças aos vossos cetros! Falai [por mim] coisas justas a Rá, e fazei que eu prospere diante de Neebca. E contemplai-me, ainda que eu esteja preso à terra nas suas partes mais íntimas, consenti que eu permaneça sobre ela e não me deixeis morrer em Amentet, mas me torne uma Alma Imortal dentro dela.
ASSIM, AO SER PESADO O coração contra a verdade, verificava-se a exatidâo dos protestos de inocência do defunto. Como as negativas vinham de seus próprios lábios, ele seria julgado pelo confronto com o seu próprio coração na balança. Se este se igualasse com a verdade, tudo correria bem e o defunto seria bem-vindo no além-túmulo; caso contrário, o morto estaria cheio de pecados e, então, seria comido por um terrível monstro: Ammut, o devorador dos mortos, visto aqui em um detalhe do papiro do Livro dos Mortos do escriba Ani. Felizmente, os papiros sugerem que o morto em juízo era sempre absolvido. O tal monstro devia passar fome.
A CABEÇA DO CHACAL também era personificação de Duamutef, um dos quatro filhos de Hórus. Como tal aparecia na tampa do vaso canopo que abrigava o estômago do morto. Uma delas pode ser vista abaixo. É da época raméssida, de proveniência desconhecida, confeccionada em faiança egípcia, tem 17 cm de altura por 16 cm de largura e pertence ao acervo do Museu do Louvre.
A egiptóloga Elisabeth Delange assim a descreve: A técnica sofisticada da faiança apresenta com realismo a pele preta brilhante do cão, com focinho alongado, com orelhas em pé, com uma peruca azul-marinho adornada com a fita vermelha ao redor do pescoço. Esta é a iconografia do cão selvagem que ronda os limites do deserto, o guardião do cemitério, o deus Anúbis, "Senhor-da-Necrópole". Anúbis, o patrono dos embalsamadores, é aquele que acompanha a alma do morto em sua última morada, usando uma peruca humana de mechas regulares, como nesta tampa. A assimilação se tornou clássica entre os dois cães funerários, Anúbis e Duamutef, ligados ambos à mumificação.
CADA COR ERA DOTADA de um valor simbólico — prossegue a autora —, pois o cão lobo errante do Egito raramente era preto. Esta cor escura evoca de maneira simbólica a terra arável depositada pela inundação, anunciadora da vida e da fecundidade. E pela consequência de toda gestação, por um renascimento. O betume e as resinas escuras de acácia que entravam na composição dos produtos de mumificação, serviam também como revestimento protetor dos sarcófagos, aromatizavam as estátuas dos deuses da fertilidade, e ainda podiam recobrir de forma benéfica as estátuas de culto.
Deus - Amon
AMON era o grande deus de Tebas, de origem incerta. Seu nome significa O Oculto. Originariamente talvez tenha sido uma divindade do ar e do vento, primeiro elemento cósmico a receber a vida no caos informe que prevalecia antes do universo ganhar forma. Posteriormente adquiriu fisionomia própria. Era representado como um homem barbado, usando na cabeça uma touca encimada por duas longas plumas, às vezes com o membro sexual ereto, o que sublinhava suas faculdades generativas, empunhando na mão direita erguida um cetro em forma de látego. Seus animais sagrados eram o carneiro de chifres curvos e o ganso. Seu santuário principal ficava em Tebas, no Alto Egito, e até hoje podemos admirar as esfinges da avenida das procissões do templo de Amon em Karnak, com seus corpos de leão e cabeças de carneiro. Entre as patas as esfinges têm uma estátua da divindade ou do faraó, protegendo-os de influências maléficas.
O EGIPTÓLOGO JOHN WILSON assim se refere a essa divindade:
O nome Amon significa "Oculto" de maneira que Amon era um deus invisível, um deus que podia ser imanente por toda parte. Segundo um antigo sistema teológico, Amon, como invisibilidade, era um dos oito deuses do caos anterior à criação. Assim, podia ser invisível e informe, ou o deus do ar. De qualquer modo, enquanto ser cósmico, podia ser transplantado facilmente de um sistema teológico para outro como deus de ação muito extensa. Chegou a substituir os deuses tebanos anteriores e a atuar como o deus de toda a nação. Com esse poder foi enxertado no deus-Sol, Rá, como "Amon-Rá, Rei dos Deuses". Como deus da nação egípcia, se converteu no grande deus imperial com o Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.) e assim assumiu um caráter universal. Há uns quatro mil anos foi construído para ele o templo mais sólido de todos os tempos, o de Karnak, com as amplas construções erguidas desde o Império Médio (c. 2040 a 1640 a.C.) até a época romana (30 a.C. a 395 d.C.). No final do Império Novo chegou a ser a mais rica potência do mundo e o poder de seu sumo sacerdote rivalizava com o do faraó. Foi no começo da XII dinastia, por volta de 1991 a.C., que essa divindade saiu da obscuridade cósmica para começar sua impressionante carreira.
PELO FATO DE SER UM DEUS DE TEBAS, conforme nos ensina o renomado egiptólogo Alan W. Shorter, ele não ocupou posição de destaque durante o primeiro grande período da história egípcia. Quando, entretanto, o trono passou para uma família originária de Tebas, os faraós do Império Médio, o deus local alcançou grande prestígio. Mais tarde, quando os príncipes tebanos da XVII dinastia (1991 a 1783 a.C.) conseguiram livrar-se do jugo odioso dos hicsos (estrangeiros que haviam invadido o país por ocasião do colapso do Império Médio), viram em Amon o artífice de sua vitória. A partir de então, a influência de Amon cresceu incessantemente e, quando o Egito estendeu o seu império à Ásia e ao Sudão, esse deus passou a ser precisamente o símbolo de tal poderio.
MAS NENHUMA DEIDADE QUE aspirasse à posição de deus nacional podia ter esperança de sucesso se não estivesse em harmonia com o vasto corpus da doutrina solar, na qual se baseava o sistema monárquico egípcio. Foi necessário, por essa razão, que o clero de Amon o identificasse com o deus-Sol — após o que se tornou Amon-Rá — e que o todo da doutrina solar lhe fosse aplicado, para que daí em diante ele passasse a ser considerado em tudo idêntico ao próprio Rá. Rá era o deus criador de todas as coisas. Ele era o deus supremo da doutrina religiosa da cidade de Heliópolis. Sempre foi considerado o mais importante de todos os deuses egípcios e assim continuou sendo ao longo de toda a história egípcia. Alan Shorter também escreveu: A evolução dos acontecimentos políticos podia, por um certo tempo, conferir prestígio a outras divindades, mas no fundo a teologia solar jamais deixava de exercer a sua influência no sentido de fazer com que os outros sistemas se adaptassem a ela. Assim, com o sincretismo das duas divindades, Amon-Rá, representado na ilustração acima, tornou-se deus nacional do Egito a partir da XVIII dinastia (c. 1550 a 1307 a.C.). Um hino egípcio, citando Punt e Mejayu, terras do incenso e das essências aromáticas, louva a divindade e enaltece seu doce perfume:
Aquele de natureza mais nobre que qualquer outro deus, ante cuja beleza os deuses se regozijam. Aquele a quem se louva na Grande Casa, a quem se coroa na Casa do Fogo. Aquele cujo doce perfume os deuses tanto apreciam, quando chegado de Punt. Exuberantemente perfumado, quando chegado da terra de Mejayu. A face formosa, quando chegado da terra do deus.
A IMPORTÂNCIA DE AMON REFLETIA-SE ATÉ no nome dos faraós. Foi assim que na XVIII dinastia quatro reis foram chamados de Amenófis (Amen-hotep), que significa Amon está satisfeito. A esposa de Amenófis I, Aahmes-Nefertari era considerada esposa de Amon. Ela dormia no templo e suas crianças eram tidas como filhos e filhas do deus. A esposa do sumo sacerdote era a concubina de Amon. Foi Amenófis I que estabeleceu as bases do culto de Amon em Tebas e ele também iniciou a edificação das magníficas construções de Karnak, ampliadas por seus sucessores, a qual se transformou na maior estrutura religiosa jamais construída pelo homem. Muito do seu reinado de apenas 10 anos foi dedicado em parte ao estabelecimento da nova religião nacional.
COM SUA ESPOSA Mut e seu filho Khons, Amon formava a tríade dos deuses tebanos, mas também tinha centros de culto em Hermópolis, Tanis e Mênfis. Na sua identificação com o deus-Sol, acreditava-se que fosse, fisicamente, o pai de todos os faraós, os quais, na qualidade de sucessores, recebiam o trono de suas próprias mãos. Para gerar seu herdeiro, Amon tomava as feições do faraó reinante e visitava a rainha enquanto esta dormia em seu palácio. Numa inscrição existente no templo de Hatshepsut, em Deir el-Bahari, o procedimento é descrito. Ao lado vemos a ilustração que acompanha o texto e que mostra, metaforicamente, esse encontro. Na figura a divindade aproxima da narina da rainha o símbolo da vida. Referindo-se a esse encontro de Aahmes, mãe de Hatshepsut, com o deus, o texto diz:
Ele a encontrou quando ela repousava em seu magnífico palácio. Ela acordou com o perfume do deus e sorriu para sua Majestade. Ele avançou direto para ela e a desejou grandemente, deu-lhe seu coração e fez que ela o contemplasse em seu aspecto divino, após ter vindo até ela. Ela se regozijou com a sua beleza, e o amor dele passou para o seu corpo; o palácio exalava o perfume do deus e seu aroma era em tudo idêntico ao de Punt.
QUANDO O IMPÉRIO EGÍPCIO SE EXPANDIU, Amon tornou-se um deus da vitória, a deidade que encorajava seu filho, o faraó, a prosseguir nas campanhas que dominariam todas as nações, tornando-as tributárias da divindade, do rei e do Egito. Vários relevos nas paredes dos templos mostram o faraó vitorioso sacrificando prisioneiros de guerra em presença do deus, golpeando suas cabeças com uma clava de pedra ou liderando o cortejo dos chefes capturados. Amon também orientava o faraó nos rumos a tomar e ordenava submissão aos inimigos. Na Estela da Vitória de Tutmósis III (c. 1479 a 1425 a.C.), atualmente no Museu do Cairo, podemos ler as determinações do deus:
Resolvi ordenar a ti que esmagues os príncipes da Palestina;
Fiz que se prostrassem aos teus pés por todos os recantos de seus países.
Ordeno-lhes que contemplem tua majestade de Senhor do Esplendor, o teu brilho em suas faces são como imagens minhas.
CONFORME NOS ENSINA E. A. WALLIS BUDGE, no decorrer da XIX (c. 1307 a 1196 a.C.) e XX (c. 1196 a 1070 a.C.) dinastias Amon era encarado como um poder criador invisível, fonte de toda a vida no céu, na terra, nas águas e no mundo do além-túmulo, e que se fazia manifestar sob a forma de Rá. Se acreditarmos no que dizem os textos antigos como, por exemplo, um poema que retrata a batalha de Kadesh, Amon era um deus que não abandonava seus fiéis. Nessa luta travada por Ramsés II (c. 1290 a 1224 a.C.) contra os hititas, quando o faraó se viu sozinho e cercado pelos inimigos, em desespero dirigiu-se à divindade e ela replicou:
Avante, avante! Eu, teu pai, estou contigo! Minha mão está junto a ti e eu valho mais que cem mil homens! Eu, o senhor da vitória, a fonte da força!
Animado por tais palavras, Ramsés II se encheu novamente de coragem e lançou um ataque tão devastador contra o inimigo que este se viu acuado. O faraó exclamou:
Sou como Montu! Atiro setas com a mão direita e digladio com a esquerda! Estou à tua frente, como Baal na sua hora! Vejo que as duas mil carruagens, no meio das quais me encontrava, foram despedaçadas após a passagem dos meus cavalos!
A INFLUÊNCIA DE AMON CRESCEU de forma continuada não apenas no Egito, mas também no exterior. Às vezes o sumo sacerdote do deus em Karnak se autonomeava chefe de todos os sacerdotes do país. A força desse homem era muito grande: a ele cabia administrar os ricos tesouros e bens do templo de Amon e podia chegar mesmo a ocupar postos civis da mais alta importância, como o de vizir, por exemplo. Boa parte das rendas do Estado e dos despojos das campanhas de conquista foram consagradas àquele deus. Além disso — explica Alan Shorter —, seus domínios não se restringiam unicamente ao Egito, mas incluíam três cidades do Líbano. Sua fama chegava a todos os cantos; em Canaã, ele era tão adorado quanto Baal ou Astartéia, e templos eram erguidos em sua honra em cidades da Síria, da Palestina e, bem ao sul, na Núbia e nos mais variados lugares, como em Napata, que estava destinada a se tornar o baluarte do culto ao deus nos últimos anos da história egípcia. Amon tinha se tornado o deus supremo do Egito e também do império egípcio, que abarcava boa parte do mundo então conhecido. Em consequência, uma concepção mais abrangente, mais universal do que era um deus começou a surgir: Amon-Rá era o criador e pai de toda a humanidade e não apenas dos egípcios. Ele, segundo o Grande Hino a Amon, era Atum o criador da humanidade, aquele cuja natureza se distinguira por ter se concebido a si mesmo; aquele que tornou as cores dos homens diferentes umas das outras.
O EGIPTÓLOGO JOHN WILSON assim se refere a essa divindade:
O nome Amon significa "Oculto" de maneira que Amon era um deus invisível, um deus que podia ser imanente por toda parte. Segundo um antigo sistema teológico, Amon, como invisibilidade, era um dos oito deuses do caos anterior à criação. Assim, podia ser invisível e informe, ou o deus do ar. De qualquer modo, enquanto ser cósmico, podia ser transplantado facilmente de um sistema teológico para outro como deus de ação muito extensa. Chegou a substituir os deuses tebanos anteriores e a atuar como o deus de toda a nação. Com esse poder foi enxertado no deus-Sol, Rá, como "Amon-Rá, Rei dos Deuses". Como deus da nação egípcia, se converteu no grande deus imperial com o Império Novo (c. 1550 a 1070 a.C.) e assim assumiu um caráter universal. Há uns quatro mil anos foi construído para ele o templo mais sólido de todos os tempos, o de Karnak, com as amplas construções erguidas desde o Império Médio (c. 2040 a 1640 a.C.) até a época romana (30 a.C. a 395 d.C.). No final do Império Novo chegou a ser a mais rica potência do mundo e o poder de seu sumo sacerdote rivalizava com o do faraó. Foi no começo da XII dinastia, por volta de 1991 a.C., que essa divindade saiu da obscuridade cósmica para começar sua impressionante carreira.
PELO FATO DE SER UM DEUS DE TEBAS, conforme nos ensina o renomado egiptólogo Alan W. Shorter, ele não ocupou posição de destaque durante o primeiro grande período da história egípcia. Quando, entretanto, o trono passou para uma família originária de Tebas, os faraós do Império Médio, o deus local alcançou grande prestígio. Mais tarde, quando os príncipes tebanos da XVII dinastia (1991 a 1783 a.C.) conseguiram livrar-se do jugo odioso dos hicsos (estrangeiros que haviam invadido o país por ocasião do colapso do Império Médio), viram em Amon o artífice de sua vitória. A partir de então, a influência de Amon cresceu incessantemente e, quando o Egito estendeu o seu império à Ásia e ao Sudão, esse deus passou a ser precisamente o símbolo de tal poderio.
MAS NENHUMA DEIDADE QUE aspirasse à posição de deus nacional podia ter esperança de sucesso se não estivesse em harmonia com o vasto corpus da doutrina solar, na qual se baseava o sistema monárquico egípcio. Foi necessário, por essa razão, que o clero de Amon o identificasse com o deus-Sol — após o que se tornou Amon-Rá — e que o todo da doutrina solar lhe fosse aplicado, para que daí em diante ele passasse a ser considerado em tudo idêntico ao próprio Rá. Rá era o deus criador de todas as coisas. Ele era o deus supremo da doutrina religiosa da cidade de Heliópolis. Sempre foi considerado o mais importante de todos os deuses egípcios e assim continuou sendo ao longo de toda a história egípcia. Alan Shorter também escreveu: A evolução dos acontecimentos políticos podia, por um certo tempo, conferir prestígio a outras divindades, mas no fundo a teologia solar jamais deixava de exercer a sua influência no sentido de fazer com que os outros sistemas se adaptassem a ela. Assim, com o sincretismo das duas divindades, Amon-Rá, representado na ilustração acima, tornou-se deus nacional do Egito a partir da XVIII dinastia (c. 1550 a 1307 a.C.). Um hino egípcio, citando Punt e Mejayu, terras do incenso e das essências aromáticas, louva a divindade e enaltece seu doce perfume:
Aquele de natureza mais nobre que qualquer outro deus, ante cuja beleza os deuses se regozijam. Aquele a quem se louva na Grande Casa, a quem se coroa na Casa do Fogo. Aquele cujo doce perfume os deuses tanto apreciam, quando chegado de Punt. Exuberantemente perfumado, quando chegado da terra de Mejayu. A face formosa, quando chegado da terra do deus.
A IMPORTÂNCIA DE AMON REFLETIA-SE ATÉ no nome dos faraós. Foi assim que na XVIII dinastia quatro reis foram chamados de Amenófis (Amen-hotep), que significa Amon está satisfeito. A esposa de Amenófis I, Aahmes-Nefertari era considerada esposa de Amon. Ela dormia no templo e suas crianças eram tidas como filhos e filhas do deus. A esposa do sumo sacerdote era a concubina de Amon. Foi Amenófis I que estabeleceu as bases do culto de Amon em Tebas e ele também iniciou a edificação das magníficas construções de Karnak, ampliadas por seus sucessores, a qual se transformou na maior estrutura religiosa jamais construída pelo homem. Muito do seu reinado de apenas 10 anos foi dedicado em parte ao estabelecimento da nova religião nacional.
COM SUA ESPOSA Mut e seu filho Khons, Amon formava a tríade dos deuses tebanos, mas também tinha centros de culto em Hermópolis, Tanis e Mênfis. Na sua identificação com o deus-Sol, acreditava-se que fosse, fisicamente, o pai de todos os faraós, os quais, na qualidade de sucessores, recebiam o trono de suas próprias mãos. Para gerar seu herdeiro, Amon tomava as feições do faraó reinante e visitava a rainha enquanto esta dormia em seu palácio. Numa inscrição existente no templo de Hatshepsut, em Deir el-Bahari, o procedimento é descrito. Ao lado vemos a ilustração que acompanha o texto e que mostra, metaforicamente, esse encontro. Na figura a divindade aproxima da narina da rainha o símbolo da vida. Referindo-se a esse encontro de Aahmes, mãe de Hatshepsut, com o deus, o texto diz:
Ele a encontrou quando ela repousava em seu magnífico palácio. Ela acordou com o perfume do deus e sorriu para sua Majestade. Ele avançou direto para ela e a desejou grandemente, deu-lhe seu coração e fez que ela o contemplasse em seu aspecto divino, após ter vindo até ela. Ela se regozijou com a sua beleza, e o amor dele passou para o seu corpo; o palácio exalava o perfume do deus e seu aroma era em tudo idêntico ao de Punt.
QUANDO O IMPÉRIO EGÍPCIO SE EXPANDIU, Amon tornou-se um deus da vitória, a deidade que encorajava seu filho, o faraó, a prosseguir nas campanhas que dominariam todas as nações, tornando-as tributárias da divindade, do rei e do Egito. Vários relevos nas paredes dos templos mostram o faraó vitorioso sacrificando prisioneiros de guerra em presença do deus, golpeando suas cabeças com uma clava de pedra ou liderando o cortejo dos chefes capturados. Amon também orientava o faraó nos rumos a tomar e ordenava submissão aos inimigos. Na Estela da Vitória de Tutmósis III (c. 1479 a 1425 a.C.), atualmente no Museu do Cairo, podemos ler as determinações do deus:
Resolvi ordenar a ti que esmagues os príncipes da Palestina;
Fiz que se prostrassem aos teus pés por todos os recantos de seus países.
Ordeno-lhes que contemplem tua majestade de Senhor do Esplendor, o teu brilho em suas faces são como imagens minhas.
CONFORME NOS ENSINA E. A. WALLIS BUDGE, no decorrer da XIX (c. 1307 a 1196 a.C.) e XX (c. 1196 a 1070 a.C.) dinastias Amon era encarado como um poder criador invisível, fonte de toda a vida no céu, na terra, nas águas e no mundo do além-túmulo, e que se fazia manifestar sob a forma de Rá. Se acreditarmos no que dizem os textos antigos como, por exemplo, um poema que retrata a batalha de Kadesh, Amon era um deus que não abandonava seus fiéis. Nessa luta travada por Ramsés II (c. 1290 a 1224 a.C.) contra os hititas, quando o faraó se viu sozinho e cercado pelos inimigos, em desespero dirigiu-se à divindade e ela replicou:
Avante, avante! Eu, teu pai, estou contigo! Minha mão está junto a ti e eu valho mais que cem mil homens! Eu, o senhor da vitória, a fonte da força!
Animado por tais palavras, Ramsés II se encheu novamente de coragem e lançou um ataque tão devastador contra o inimigo que este se viu acuado. O faraó exclamou:
Sou como Montu! Atiro setas com a mão direita e digladio com a esquerda! Estou à tua frente, como Baal na sua hora! Vejo que as duas mil carruagens, no meio das quais me encontrava, foram despedaçadas após a passagem dos meus cavalos!
A INFLUÊNCIA DE AMON CRESCEU de forma continuada não apenas no Egito, mas também no exterior. Às vezes o sumo sacerdote do deus em Karnak se autonomeava chefe de todos os sacerdotes do país. A força desse homem era muito grande: a ele cabia administrar os ricos tesouros e bens do templo de Amon e podia chegar mesmo a ocupar postos civis da mais alta importância, como o de vizir, por exemplo. Boa parte das rendas do Estado e dos despojos das campanhas de conquista foram consagradas àquele deus. Além disso — explica Alan Shorter —, seus domínios não se restringiam unicamente ao Egito, mas incluíam três cidades do Líbano. Sua fama chegava a todos os cantos; em Canaã, ele era tão adorado quanto Baal ou Astartéia, e templos eram erguidos em sua honra em cidades da Síria, da Palestina e, bem ao sul, na Núbia e nos mais variados lugares, como em Napata, que estava destinada a se tornar o baluarte do culto ao deus nos últimos anos da história egípcia. Amon tinha se tornado o deus supremo do Egito e também do império egípcio, que abarcava boa parte do mundo então conhecido. Em consequência, uma concepção mais abrangente, mais universal do que era um deus começou a surgir: Amon-Rá era o criador e pai de toda a humanidade e não apenas dos egípcios. Ele, segundo o Grande Hino a Amon, era Atum o criador da humanidade, aquele cuja natureza se distinguira por ter se concebido a si mesmo; aquele que tornou as cores dos homens diferentes umas das outras.
AMON FALAVA ATRAVÉS DE ORÁCULOS, sendo que um dos mais célebres ficava em Siwa, no deserto líbio. Foi aí que Alexandre Magno — diz a lenda — ouviu do próprio deus a confirmação de que era seu filho. Os gregos identificaram Amon com Zeus e os romanos com Júpiter.
De acordo com o estudioso alexandrino Apolodoro, Perseu, o lendário fundador de Micenas, nunca teria nascido se seu avô tivesse conseguido seu intento. Acrísio, rei de Argos, era pai de uma linda filha, Dânae, mas estava desapontado por não ter um filho. Quando consultou o oráculo sobre a ausência de um herdeiro homem, recebeu a informação que não geraria um filho, mas com o passar do tempo teria um neto, cujo destino era matar o avô. Acrísio tomou medidas extremas para fugir deste destino. Trancou Dânae no topo de uma torre de bronze, e lá permaneceu numa total reclusão até o dia em que foi visitada por Zeus na forma de uma chuva de ouro; assim deu à luz a Perseu. Acrísio ficou furioso, mas ainda achava que seu destino poderia ser evitado. Fez seu carpinteiro construir uma grande arca, dentro da qual Dânae foi forçada a entrar com seu bebê, sendo levados para o mar. Entretanto, conseguiram sobreviver às ondas, e após uma cansativa jornada a arca foi jogada nas praias de Sérifo, uma das ilhas das Ciclades. Dânae e Perseu foram encontrados e cuidados por um honesto pescador, Dictis, irmão do menos escrupuloso rei de Sérifo, Polidectes.Com o passar do tempo, Polidectes apaixonou-se por Dânae, mas enquanto crescia Perseu protegeu ciumentamente sua mãe dos indesejados avanços do rei. Um dia, durante um banquete, Polidectes perguntou a seus convidados que presente cada um estava preparado a oferecer-lhe. Todos os outros prometeram cavalos, mas Perseu ofereceu-se a trazer a cabeça da górgone. Quando Polidectes o fez cumprir sua palavra, Perseu foi forçado a honrar sua oferta. As górgones eram em número de três, monstruosas criaturas aladas com cabelos de serpentes; duas eram imortais mas a terceira, Medusa, era mortal e assim potencialmente vulnerável; a dificuldade era que qualquer um que a olhasse se transformaria em pedra. Felizmente, Hermes veio em sua ajuda, e mostrou a Perseu o caminho das Gréias, três velhas irmãs que compartilhavam um olho e um dente entre si. Instruído por Hermes, Perseu conseguiu se apoderar do olho e do dente, recusando-se a devolvê-los até que as Gréias mostrassem o caminho até as Ninfas, que lhe forneceriam os equipamentos que necessitava para lidar com Medusa. As Ninfas prestimosamente forneceram uma capa de escuridão que permitiria a Perseu pegar a Medusa de surpresa, botas aladas para facilitar sua fuga e uma bolsa especial para colocar a cabeça imediatamente após a ter decepado. Hermes sacou uma faca em forma de foice, e assim Perseu seguiu completamente equipado para encontrar Medusa. Com a ajuda de Atena, que segurou um espelho de bronze no qual podia ver a imagem da górgone, ao invés de olhar diretamente para sua terrível face, conseguiu finalmente despachá-la. Acomodando a cabeça de modo seguro na sua bolsa, retornou rapidamente a Sérifo, auxiliado por suas botas aladas.
Ao sobrevoar a costa da Etiópia, Perseu viu abaixo uma linda princesa atada numa rocha. Esta era Andrômeda, cuja fútil mãe Cassiopéia tinha incorrido na ira de Posídon ao espalhar que era mais bonita do que as filhas do deus do mar Nereu. Para puni-la, Posídon enviou um monstro marinho para devastar o reino; apenas poderia ser parado se recebesse a oferenda da filha da rainha, Andrômeda, que foi assim colocada na orla marítima para esperar o terrível destino. Perseu apaixonou-se imediatamente, matou o monstro marinho e libertou a princesa. Os pais dela, em júbilo, ofereceram Andrômeda como esposa a Perseu, e os dois seguiram na jornada para Sérifo. Polidectes não acreditava que Perseu pudesse retornar, e deve ter sido bastante gratificante para Perseu observar o tirano ficar lentamente petrificado sob o olhar da cabeça da górgone. Perseu deu então a cabeça a Atena, que a fixou como um emblema no centro de seu protetor peitoral.
Perseu, Dânae e Andrômeda seguiram então juntos para Argos, onde esperavam se reconciliar com o velho rei Acrísio. Mas quando Acrísio soube desta vinda, fugiu da presença ameaçadora de seu neto, indo para a Tessália, onde, não conhecendo um ao outro, Acrísio e Perseu acabaram se encontrando nos jogos fúnebres do rei de Larissa. Aqui a previsão do oráculo que Acrísio temia se realizou, pois Perseu atirou um disco, o qual se desviou do curso e atingiu Acrísio enquanto estava entre os espectadores, matando-o instantaneamente.
Perseu com sensibilidade decidiu que não seria muito popular voltar a Argos e reivindicar o trono de Acrísio logo após tê-lo morto; assim, ao invés, fez uma troca de reinos com seu primo Megapentes. Megapentes se dirigiu a Argos enquanto Perseu governou Tirinto, onde é considerado como responsável pelas fortificações de Midéia e Micenas.
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